Entrevista com a realizadora Emily Atef
Mais que Nunca (Cannes 2022, secção Un Certain Regard) é o primeiro filme da realizadora franco-iraniana, nascida em Berlin, Emily Atef, a estrear-se em Portugal. Chega às salas a 1 de Agosto e tem como protagonistas Vicky Krieps (com uma fabulosa interpretação) e Gaspard Ulliel, também ele sublime neste que seria o seu último papel (o actor morreu num acidente de ski antes da estreia).
Uma história de agonia que se torna uma história de emancipação, um filme sobre a liberdade no meio da natureza impressionante das paisagens da Noruega.
Leia aqui uma entrevista com a realizadora.
– Mais Que Nunca conta a história de uma jovem mulher com uma doença grave que se recusa a seguir o tratamento hospitalar indicado, de forma a poder embarcar numa viagem. Como surgiu o desejo de contar esta história?
Emily Atef – A minha mãe sofreu de esclerose múltipla durante vinte e dois anos, entre os cinquenta e cinco e os setenta e oito. Dois anos depois de ter começado a pensar neste projecto, há mais de dez anos, ela teve um cancro. Éramos muito próximas. Falámos muito sobre o seu estado e ela própria pensava muito em como apoiar as pessoas que estavam doentes, como as ajudar a "deixar-se ir". Durante o período de escrita deste projecto ela estava em sofrimento. Morreu em 2015. Ao longo da sua doença, foi o trabalho no filme que me ajudou a encontrar a atitude certa, a força para lhe dizer, mesmo que isso me custasse: "Não tens de fazer quimioterapia se não quiseres, podes fazer o que quiseres". Desde pequena que penso muitas vezes nesse momento do fim da vida. Como é que posso partir sentindo-me bem? Como é que podemos encontrar a nossa própria forma de lidar com a doença e, se necessário, com a morte? A história de Hélène é sobre isso.
– A sua trajectória é, contra todas as expectativas, muito luminosa. Havia um desejo claro da sua parte de fazer um filme solar sobre um tema algo fúnebre?
E. A. – Sim. Na nossa sociedade ocidental, a morte é sempre retratada como algo terrível, sombrio, demoníaco. Mas eu nunca a vi assim. Para mim, a morte não é algo macabro e sinistro. Claro que não nego que para nós, os vivos, perder um ente querido é muito triste, é de partir o coração. Mas para a pessoa que está a partir não deveria sê-lo. Infelizmente, na nossa sociedade, a morte tem uma má reputação, e isso é uma pena. Mesmo sabendo que vamos morrer – é a única coisa de que temos a certeza! – preferimos evitar o assunto. Mas devíamos estar a falar sobre isso. Se tenho algo a esperar deste filme, é que os espectadores que o virem queiram talvez discutir este tema com os seus entes queridos. O fim da vida não deveria ser um assunto tabu.
– Hélène escolheu ir para a Noruega. Porquê este país e não outro qualquer?
E. A. – Pela sua luz. Na Noruega, no Verão, não há noite. A luz nunca se apaga. Isto pareceu-me um diálogo interessante com um livro que tinha lido, The Near-Death Experience, que reúne testemunhos de pessoas que experienciaram uma morte médica. Todos eles falam sobre esta luz no momento de deixar o mundo, e de formas brancas. Durante as filmagens na Noruega, tentei encontrar uma luz que evocasse isso, esta revelação ligeiramente mística. Ao mesmo tempo, quando Hélène lá chega, a luz é tão forte e omnipresente que a agride, impedindo-a de dormir. É uma experiência que, à partida, parece hostil e desagradável. Queria também filmar esta natureza crua.
– O que é que esta natureza lhe permite, no fim de contas, contar?
E. A. – Permite contar a história de algo maior que nós próprios – maior que Hélène e a sua doença. Esta natureza é impressionante e intemporal. Parece indiferente. No meio dos fiordes, tornamo-nos humildes.
– Pode falar-nos da doença de Hélène? Há aqui uma metáfora mais existencial?
E. A. – A Hélène sofre de uma doença rara chamada fibrose pulmonar idiopática. Os pulmões endurecem e tornam-se menos elásticos, até que o ar deixa de poder entrar e a pessoa deixa de poder respirar. Não se sabe de onde vem esta doença, nem como a tratar. Um transplante pode ajudar durante algum tempo, mas nem sempre. Esta doença simboliza a vida de Hélène. Ela é uma jovem que nunca teve a vida que gostaria de ter tido. Nunca pôde "respirar" como queria, fez coisas pela mãe, pelo marido... Mas, no fim de contas, está a tornar-se cada vez mais claustrofóbica. Consegue respirar cada vez menos. Paradoxalmente, esta doença vai permitir-lhe fazer uma escolha de emancipação. Ao decidir partir, ela começa finalmente a respirar. Torna-se ela própria.
– Mais Que Nunca é também um filme sobre um casal. Tinha o objectivo de contar uma história de amor?
E. A. – Sim. Essa dimensão do filme é muito importante. Não há maior prova de amor do que continuar a amar quando nos separamos. Mathieu, o seu namorado interpretado por Gaspard Ulliel, é para mim o herói do final do filme, porque permitiu que Hélène vivesse o fim da sua vida como ela realmente queria. E mesmo que seja terrível para ele, pode olhar-se ao espelho e dizer: "Fiz o que ela queria". Ele compreende que tem de a deixar.
– No início, porém, ele leva a mal o facto de ela recusar tratar-se…
E. A. – Sim, no início ele é um ser humano que luta pelo que quer. Nós, os vivos, nunca perguntamos aos moribundos o que é que eles pensam. Pensamos que sabemos o que eles querem porque, por puro egoísmo, não queremos que eles partam. Queremos estar presentes até ao seu último suspiro. Muitas vezes, as pessoas à sua volta parecem estar a sofrer quase mais do que a pessoa que está doente, e eles passam o tempo a tranquilizá-las. E isso é muito cansativo. Hélène dedica muita energia a convencer Matthieu, que não a compreende, a tranquilizar os amigos, que andam a pisar ovos, e a animar a mãe, que teve um colapso... A frase utilizada pela personagem Mister, interpretada por Bjorn Floberg, resume tudo: "Os vivos não conseguem compreender os moribundos".
– É o seu anfitrião norueguês. Porque é que o seu papel é importante?
E. A. – Ele é o "barqueiro". Graças a ele e ao seu blogue, no qual goza com a sua doença e morte, Hélène toma a decisão de partir. Ele próprio viveu um trauma, durante um acidente numa plataforma petrolífera em que trinta e três pessoas perderam a vida. Tem uma forma muito clara e irónica de lidar com a sua situação. Para ele, ninguém pode escolher por nós as condições da nossa morte. Está completamente do lado do livre arbítrio. Permite que Hélène se encontre a si própria, que embarque na sua própria viagem de iniciação, sem nunca a empurrar numa determinada direcção.
– O que o filme mostra de uma forma rara e poderosa é como um casal pode reinventar-se e resistir à maior de todas as provações…
E. A. – É por isso que existe apenas uma cena de amor, que acontece no final. Hélène e Matthieu estão finalmente no mesmo comprimento de onda. Podem amar-se "mais do que nunca", porque ele aceita finalmente o que ela quer. A sensualidade é finalmente possível entre eles. Nesta cena, estamos o mais próximo possível das suas peles, captamos a sua intimidade carnal e o incrível amor que sentem um pelo outro no preciso momento em que aceitam a ideia da morte e de não terminarem as suas vidas juntos.
– Vicky Krieps está absolutamente incrível no papel de Hélène. Como é que se conheceram?
E. A. – A Vicky é minha vizinha, vivemos a dois minutos a pé uma da outra em Berlim. Conhecemo-nos há quase dez anos. As nossas filhas têm a mesma idade e são grandes amigas. Ela fez uma participação especial no meu filme anterior, 3 Dias em Quiberon, onde fez de empregada doméstica. Combinei encontrar-me com ela um dia num café e, no espaço de uma hora, apresentei-lhe o filme inteiro. No final, a Vicky estava a chorar, e disse: "Não preciso de ler o guião, eu faço-o." E depois apresentou-me ao Gaspard... A Vicky é uma actriz extraordinária. Há algo de tão estranho e intemporal nela. Ela está aqui e já está noutro lugar. Fisicamente, na sua maneira de ser... É simultaneamente sensível e muito forte. Inspirou-me muito.
– A câmara permite-nos estar muito próximos dela, sem ser imersiva. Como é que pensaram nos enquadramentos?
E. A. – Conversámos muito com o Yves Cape, o director de fotografia. Para nós, o mais importante era dar-lhe espaço e tempo. É uma personagem doente, com falta de ar, que tem de fazer pausas, que tosse, que tem uma voz muito suave, mesmo quando está a dizer coisas terríveis. Precisava de uma câmara calma e próxima para lhe dar esse espaço.
– E o resto da mise-en-scène? O filme está mais ou menos dividido em dois, com a primeira parte na cidade e a segunda no campo...
E. A. – Na parte de Bordéus, tentámos criar um mundo muito claustrofóbico, onde a Hélène nunca sai. É tudo filmado em interiores. Pensámos em tudo isto com Yves Cape e Silke Fischer, a directora de arte. Rodámos grande parte do filme em apartamentos, com as persianas fechadas, Hélène deitada na cama, o som abafado da cidade. Ela está presa numa espécie de depressão, porque os vivos não a compreendem, excepto Mister, o blogger norueguês que está a passar pelo mesmo: está vivo e sabe que vai morrer.
A chegada à Noruega é filmada como um nascimento. As imagens abrem-se. Vicky torna-se muito pequena, misturando-se na paisagem até desaparecer. Deixa-se imergir na água. Torna-se una com a natureza.
– Há muitas incisões poéticas e aquáticas. Como é que surgiu o motivo da água? É uma metáfora para o quê?
E. A. – Eu chamo-lhes visões. São imagens do seu subconsciente interior que vêm procurá-la. Levam-na para onde ela pertence, para a natureza. Há imagens de imersão, do oceano. O motivo do mar é a viagem crua para o outro mundo. Uma viagem difícil e magnífica. É também um nascimento, quando se emerge do líquido amniótico, apenas para morrer.
– O som também é importante...
E. A. – Nicolas Cantin é um engenheiro de som extraordinário. No final, é um filme muito calmo. Trabalhámos muito na pós-produção. A natureza tem a sua própria linguagem. Demos-lhe espaço. A voz de Vicky é muito suave, quase ofegante, mas também pode explodir num momento de libertação. Chamámos a esta cena "a cena branca", porque todos os sons da natureza são apagados. Tudo está em "mutação", a água, o vento nas árvores, um pássaro que passa – até ele está em silêncio! É como se a natureza se tivesse afastado para permitir que Hélène / Vicky ocupasse o lugar central.
– Ao mesmo tempo que lida com sentimentos complexos, Mais Que Nunca exala fluidez e simplicidade. Encontrou o ritmo logo de início ou aconteceu mais tarde, durante a montagem?
E. A. – Comecei a montagem em Outubro de 2021. Sandie Bompar, a montadora, chegou ao projecto depois de uma primeira versão, enquanto eu filmava episódios de Killing Eve em Londres. Ela levou o filme para uma narrativa menos convencional. Inicialmente, o meu filme era muito mais explicativo. Não hesitámos em cortar cenas. Foi ela que teve a ideia das colagens para evocar o passado de Mister.
– Podemos dizer que o seu filme não é uma história de agonia mas sobretudo de emancipação, um filme sobre a liberdade?
E. A. – Sim, exactamente. É um filme sobre uma mulher que se emancipa ao aceitar morrer como quer.
– Como disse, grande parte da revelação da heroína é conseguida através da beleza grandiosa da paisagem. É impossível não pensar em Ingrid Bergman em Stromboli...
E. A. – Esse é um filme que eu e a Vicky vimos muito tarde, pouco antes de começar a filmar. Confesso que nunca o tinha visto e foi o meu assistente Guillaume Bonnier que nos aconselhou a vê-lo. Ingrid Bergman, em Stromboli, é intragável com o marido pescador e com os outros habitantes da ilha, e isso ajudou-nos muito a imaginar uma heroína que não fosse necessariamente simpática, ou politicamente correcta. Hélène, também ela, tem que subir ao seu vulcão... Outro filme que achei muito inspirador foi A Mulher das Dunas, de Hiroshi Teshigahara. Adoro a natureza invasiva que exprime o subconsciente da personagem.
– A sua belíssima longa-metragem anterior, 3 Dias em Quiberon, também mostrava uma mulher à deriva, sozinha no mar... Tratava-se de Romy Schneider, quando começou a ficar muito doente. Porquê esta vontade de filmar mulheres neste momento das suas vidas, quando parecem estar à beira do desaparecimento?
E. A. – Interessa-me esse momento do percurso existencial de uma mulher, quando ela está a tentar sair desse buraco onde se perdeu. É um momento em que não é compreendida, em que as pessoas estão sempre a dizer-lhe o que fazer. Tem então de encontrar o seu centro e libertar-se do olhar dos outros, para saber o que realmente quer. Para Romy, isso era parar para estar com os seus filhos, fazer uma pausa. Para Hélène, trata-se de procurar o lugar onde pode deixar-se ir, onde quer viver os seus últimos momentos na terra. Esta viagem é acompanhada de um certo mal-estar. Mas no final há uma luz, uma libertação.
– O filme tem um peso muito grande: é o último papel de Gaspard Ulliel. Como é que se sentiu com a sua morte?
E. A. – Foi terrível. Quando aconteceu, eu e a Sandie estávamos em Berlim, a terminar a montagem. Estávamos tão próximas dele, sempre com a sua imagem o tempo todo. No dia do seu desaparecimento, tive uma última conversa com ele através de mensagens. Durante as filmagens, Gaspard partilhou sempre comigo as suas dúvidas; tinha medo de não ter estado tão bem no filme quanto gostaria. Era tão perfeccionista! Era um actor exigente que tinha muitas dúvidas sobre si próprio, sobre a personagem, sobre o filme talvez. Disse-lhe naquela mensagem de voz que estava muito contente com o filme, com ele, e com a química que tinha criado com a Vicky.
– No último plano do filme, é ele que desaparece a bordo de um barco. Ficamos tão comovidos, de tal forma parece ser um prenúncio…
E. A. – Esse final era muito importante. Preparámo-lo muito cedo. Não queria que fosse melodramático ou demasiado distante. Queria que fosse emotivo mas, no final, luminoso. Ele parte num barco e ela fica em terra. Estou sempre a pensar no Gaspard. Penso em como ele estava feliz durante as filmagens. Por causa da pandemia, a equipa francesa éramos um grupo muito pequeno, em quarentena na Noruega num lugar absolutamente mágico, e juntávamo-nos ao ar livre, passando o tempo de manhã à noite no meio dos fiordes, dando passeios, andando de caiaque, comendo, ensaiando e dançando. Gaspard era diferente do homem que era em Paris. Estava sempre a brincar. Ele e Vicky eram tão próximos. Era maravilhoso.
[Entrevista de Emily Barnett para o dossier de imprensa do filme. Tradução de Rebeca Csalog]