Ryusuke Hamaguchi: “Ouvir-me a mim mesmo ou aos filmes a que assisti na vida ajuda-me a encontrar uma direcção”

Ryusuke Hamaguchi foi um dos convidados do LEFFEST – Lisboa Film Festival em Novembro último. Deu uma masterclass e apresentou, em antestreia, num Tivoli cheio que o aplaudiu de pé durante largos minutos, o seu mais recente filme, Evil Does not Exist – O Mal não Está Aqui, Grande Prémio do Júri em Veneza. Seguiram-se vários prémios noutros festivais, e há poucas semanas venceu os Asian Film Awards, uma espécie de Óscares asiáticos.

Fica aqui um excerto da conversa de Paulo Branco e António M. Costa com o realizador, a seguir à projecção do filme.


Evil Does not Exist – O Mal não Está Aqui estreia-se esta semana, a 28 de Março, nos cinemas portugueses.


Paulo Branco — Conte-nos um pouco como surgiu a ideia para este filme, que é bem diferente dos filmes que fez antes — as palavras, os diálogos, têm aqui uma presença enorme, mas apenas nos mínimos necessários. Gostaria de lhe pedir que nos contasse um pouco mais sobre isso.


Ryusuke Hamaguchi — Fiquei um ano sem saber exactamente o que poderia fazer em termos visuais para esta música (que já existia). Quando percebi que Ishibashi aceitaria qualquer uma das minhas propostas, então decidi escrever um argumento e fazê-lo de propósito para esta música. Então, como é uma espécie de trabalho visual para uma música (já existente), precisei de pensar de forma rápida, precisei de pensar como num filme mudo, já que a música ocuparia o espaço do som neste filme. É por isso que não há tanto texto neste filme, porque eu estava interessado nesta abordagem.


PB — Já sabia o local onde ia filmar ou foi algo que descobriu quando começou a pensar no filme? Gostaria de saber também se já tinha acesso à música antes de começar, e se durante o período em que estava a filmar já estava a pensar na música e a mudar o argumento para se adaptar — ou já estava tudo escrito antes?


RH — Falando da música, no início recebi três demos. Não sabia como os abordar, e por isso decidi visitar um estúdio, um estúdio perto do local onde estava a filmar. Durante o período de pesquisa quis perceber o que estava a acontecer na vida real, ou seja, as pessoas da cidade a falar sobre o projecto de glamping* — foi assim que consegui a história, a partir de experiências reais. Cerca de 90% do argumento já estava pronto quando comecei a filmar. Uma coisa que mudei durante as filmagens foi quando o assistente de realização encontrou os ossos do veado bebé, então aí fiz algumas alterações. Depois de terminarmos as filmagens, a compositora, Eiko Ishibashi, fez a música da cena de abertura. Então acaba por ser uma espécie de correspondência que fiz com a Ishibashi, entre a música e o filme.


António M. Costa — Há uma certa abstracção neste filme, que me faz lembrar Antonioni, em algumas paisagens, nas montanhas. Isto deve-se à vontade de filmar para a música de Ishibashi, ou qual foi o motivo para procurar uma paisagem assim — era algo que vocês tinham em mente, esta abstracção?


RH — O maior motivo é que este foi um filme de baixo orçamento. Sem dinheiro, tive que encontrar algo que estivesse sempre em movimento. Os cenários da natureza, como o vento, as folhas, o fogo, as coisas que se movem sozinhas — achei que esses pequenos movimentos combinavam muito bem com a música de Ishibashi. Através de pequenos movimentos que se vão acumulando em camadas, consigo contar uma história.


PB — O que para mim é muito forte é que vamos para a primeira parte do filme, não que pensemos que é um documentário, mas quase — vemos uma aldeia, uma região, problemas económicos, e tudo é apresentado de uma forma misteriosa, e o facto é que o filme é mais misterioso que a música, e isso é algo que me impressionou. Concorda comigo?


RH — Aprecio muito que se tenha sentido assim. A forma como aplico a música neste filme é feita para aumentar a percepção do espectador. Se fizer um pequeno movimento com esta música detalhada, aumento a percepção do espectador — para reagir, focar e concentrar-se nesses pequenos movimentos. O filme em si é filmado em pequenos movimentos, assim como a música de Eiko é sobreposta em pequenos sons. Então, convido o espectador a assistir ao filme, ouvir a música, deixar-se levar, e depois corto abruptamente. Assim a percepção dos espectadores aumenta, quando a música é cortada abruptamente. A capacidade de sentir o ruído ambiente, o som ambiente, fica muito aumentada por causa desse corte. Para dar vida a uma cena. Isto é o que fazia muitas vezes Godard.

[…]


RH — Depois de ouvir o título do filme, Evil Does Not Exist – O Mal não Está Aqui, talvez você se pergunte: a sério? Na verdade estou referir-me à natureza da natureza, então o mal é uma forma de dizer por outras palavras a natureza. A natureza pode ser muito violenta (e provavelmente a cultura japonesa está a influenciar a minha forma de pensar), mas quando a violência vem da natureza, não há má intenção. Desde o início, não existe maldade na natureza, mas neste filme podemos sentir que existe algum tipo de mal a surgir por causa da presença dos seres humanos. Portanto, sempre que nós humanos agimos ou fazemos algo, surge o bem e o mal e não podemos fazer nada a esse respeito. Quando tentamos fazer algo de bom para nós mesmos ou para os outros, de alguma forma acaba por surgir sempre o mal.


Espectador — Adorei o seu filme, acho que foi muito poderoso, e fiquei surpreendido porque acho que foi muito diferente dos outros que conheço, e acho que o final tem um clímax muito forte, muito original, é diferente. Isso é por causa da música? É intencional ou não?

RH — Sim, é por causa da música. Em primeiro lugar, a origem deste filme dá-se através da música de Ishibashi. Então se ouvir a música dela pode entender que não há realmente uma conclusão, são sempre pequenos movimentos num continuum. Então o sentimento que experiencia, a abstracção, o mistério, é algo que a música traz, e eu estava a ser leal à música enquanto fazia este filme. Muitas pessoas se perguntaram o porquê deste final, mas para mim está escrito assim. Recebi a coragem da música, para fazer o final desta forma.

[…]


PB — Obrigado. Só para finalizar, sei que está a preparar um novo filme. Como consegue fazer isso, fez tantos filmes surpreendentes e é verdade que é um dos realizadores sempre mais aguardados a trabalhar neste momento, para nós, para o público. Chega a conseguir filmar quase um filme por ano, até dois, e eu gostava de saber se quando está a fazer um filme está já a pensar no próximo ou se basta pensar num novo projecto quando termina um. Adoraria saber alguma coisa sobre o novo.


RH — Não tenho nenhum projecto novo!


PB — Até amanhã! (risos)


RH — Depois de Drive My Car, enquanto estava a produzir, a filmar Evil Does Not Exist, fiquei um pouco perdido. Então, para saber em que direcção precisava de seguir, deixei que a música de Ishibashi de alguma forma me conduzisse. Não sei o que vai acontecer a seguir. A única coisa que sei é que tenho que ouvir o meu coração para saber o que preciso de fazer. E às vezes ouvir-me a mim mesmo ou aos filmes a que assisti na vida ajuda-me a encontrar uma direcção. E alguns desses filmes, claro, são os filmes de Manoel de Oliveira. Chegar a esse ponto onde o Manoel de Oliveira chegou é muito difícil e ao mesmo tempo estou muito feliz por estar ao lado do lendário produtor Paulo Branco e por passarmos momentos juntos aqui. Portanto, ser honesto consigo mesmo é um bom augúrio. Confesso que há três cenas que de alguma forma roubei a Oliveira, por favor tentem encontrá-las mais tarde. Muito obrigado.



*Campismo de luxo.

O tradutor-intérprete durante a conversa foi Takashi Sugimoto. A transcrição e a tradução a partir do inglês foi feita por Rebeca Csalog.


Veja aqui a conversa: https://youtu.be/Vn9DiOLDUB4