PALAVRA E UTOPIA, o filme de Manoel de Oliveira sobre Pe. António Vieira, em sessão especial no Nimas

Nas últimas semanas escreveu-se e falou-se muito sobre Pe António Vieira. Autor de uma obra vasta, das mais importantes em língua portuguesa (“A língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu o Padre António Vieira”, afirmou José Saramago), ele surge em várias obras de Manoel de Oliveira, que dedicou por inteiro Palavra e Utopia (2000) à sua vida, à sua obra, à sua palavra, num filme onde, diz o cineasta, “não há palavra ou acontecimento que não seja tirado dos sermões, ou das cartas, ou duma base histórica fundada e reconhecida. Nem nenhuma minha, nem nenhuma do historiador, Pe. João Marques que me acompanhou e forneceu os elementos para elaborar a minha planificação”.

Devemos (re)vê-lo, devemos debatê-lo. Por isso, a Medeia Filmes programou Palavra e Utopia para esta quarta-feira, 15 de Julho, integrado num ciclo especial de 10 filmes “a propósito do racismo e da escravatura”. A projecção será seguida de debate.


Sessão Especial: Quarta-feira, 15 de Julho, 21h - Cinema Nimas

PALAVRA E UTOPIA de Manoel de Oliveira
com Lima Duarte, Luis Miguel Cintra, Ricardo Trêpa, Leonor Silveira, Miguel Guilherme, Renato di Carmine, Canto e Castro, Diogo Dória, Paulo Matos
Cópia 35mm
 
Projecção seguida de debate, com a professora e investigadora Maria do Rosário Lupi Bello, o professor José Eduardo Franco, um dos organizadores da edição da Obra Completa do Padre António Vieira, e o produtor do filme, Paulo Branco.
 
Com PALAVRA E UTOPIA, Oliveira regressa à figura do Padre António Vieira, que já surgira em Lisboa Cultural (1983), que paira sobre Non ou Vã Glória de Mandar (1990), e a que voltará em O Quinto Império – Ontem como Hoje (2004).
 
PALAVRA E UTOPIA «É um filme sobre o Padre António Vieira, sobre a vida do Padre António Vieira, sobre a palavra do Padre António Vieira, sobre a Utopia do Padre António Vieira», escrevia João Bénard da Costa sobre este Vieira «uno e trino» que o cineasta nos trouxe em 2000.
 
Estreado no festival de Veneza (Selecção Oficial em Competição), onde recebeu os maiores elogios da crítica, que lhe atribuiu um prémio, PALAVRA E UTOPIA foi, nesse mesmo ano, o filme de abertura da Mostra de S. Paulo.


Em Coimbra, no ano de 1663, o Padre António Vieira apresenta-se perante o Tribunal do Santo Ofício. O célebre padre da Companhia de Jesus, cujos sermões o tornariam no mais conhecido orador religioso português, está sob a mira do tribunal da Inquisição, que o leva a revisitar toda a sua juventude e percurso (o realizador recorre a 3 actores para o representarem: Ricardo Trêpa na juventude, Luis Miguel Cintra na idade adulta e Lima Duarte na velhice). Rodado no Brasil, em Portugal, em Itália e na França, Palavra e Utopia explora a vida e a obra de um homem visionário, crítico, muitas vezes incompreendido pela própria Igreja, amigo e confidente do rei D. João VI, um dos maiores vultos da nossa literatura (Pessoa chama-lhe “o Imperador da Língua Portuguesa”), e uma figura incontornável da história de Portugal, que continua a suscitar o debate.
 
 
PALAVRA E CINEMA

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É frequente verem em Palavra e Utopia um Vieira à Manoel de Oliveira. Quem conheça bem o que foram os acontecimentos, os sermões e as cartas do Pe. António Vieira poderá ver um filme de Manoel de Oliveira, mas não um Vieira à Manoel de Oliveira. Neste filme não há palavra ou acontecimento que não seja tirado dos sermões, ou das cartas, ou duma base histórica fundada e reconhecida. Nem nenhuma minha, nem nenhuma do historiador, Pe. João Marques que me acompanhou e forneceu os elementos para elaborar a minha planificação. Só pus da minha lavra as palavras: “Chegou agora”, quando entrego a carta ao Pe. Bonucci. Só não digo que é um filme histórico, porque eu não estava presente há trezentos anos para ver com toda a justeza como se passaram as coisas. Mas nos púlpitos, nos que havia, e eram quase todos, os actores pregaram partes do que Vieira pregou nesses mesmos púlpitos, logo nessas mesmas igrejas. Há quem diga que os três actores não casam bem entre si e entre os três Vieiras. Esquecem o próprio Vieira que, já velho, em sermão dito pelo actor Lima Duarte, nos fala das quatro vigílias, e as transpõe para as quatro idades do homem: a do menino, a do mancebo, a do adulto e a do velho. E faz, para cada um deles, um retrato diferente, uma entidade diferente, um comportamento diferente. Como havia eu, depois de conhecer este sermão de Vieira, fazer os três semelhantes? Procurei no filme ser tão correcto quanto me foi possível, dentro do que, como décor, encontrei como era ao tempo. Porém foi pouco, mesmo muito pouco, para não dizer que quase nada existia que não tivesse sido alterado. E isso obrigou a submeter-me à escassez do que havia há trezentos anos antes. E não pretendendo o impossível, à maneira americana como é hábito fazerem nos filmes congéneres, reconstruindo ficções que se afastam da realidade histórica em favor do grande espectáculo, condicionei e limitei-me ao que havia. Desta circunstância, resultou um filme sóbrio, sólido e modesto nos aparatos, mas historicamente certo. Perante a figura do Pe. António Vieira, ao contrário do realizador se fazer sobressair, foi ele a esforçar-se por fazer sobressair Vieira na pele dos actores que o representaram em cada uma das suas três vigílias, sendo a última a privilegiada, pois nela se descarregava toda a dramática luta por que pelejou nas anteriores vigílias desde o primeiro sermão pregado antes da sua ordenação.
[…]


Manoel de Oliveira
Cahiers du Cinéma, n.º 555, Março de 2001 [excerto]


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