Os filmes da vida de Mário Barroso, realizador de LAVAGANTE
Pedimos a Mário Barroso, realizador de LAVAGANTE — noir de amor ferido que continua a encantar espectadores nas salas de cinema — que partilhasse os filmes da sua vida. Respondeu-nos com um texto belíssimo, que publicamos na íntegra.
Filmes de que gostei e me lembro e os filmes que me marcaram.
Os que mais me marcaram não são provavelmente os de que mais gostei.
Os da minha infância, levado ao cinema pela minha madrinha:
– Os filmes do e com Chaplin. Não sei quantos vi nem quais, mas adorava ir ao cinema ver o «Charlot», como ela dizia.
– Os filmes do «Cantinflas» que nos faziam rir. Não me lembro dos títulos.
– Ainda muito pequeno, lembro-me de AS PUPILAS DO SENHOR REITOR, mais do título que das imagens. A primeira vez em que fui sozinho ao cinema. Como não revi, não sei se o de Leitão de Barros ou o de Perdigão Queiroga. Deve ser o deste último (1961), já eu teria 12 ou 13 anos.
Na adolescência o consumo de filmes aumentou imenso. Adorava os westerns e os filmes de guerra, ainda sem grande critério, mais atraído pelos actores e actrizes, sem ligar muito aos nomes dos realizadores.
Só por volta dos 14/15 anos, orientado pelo meu primo Alfredo, dois anos mais velho mas já assumido cinéfilo, comecei a ver no cinema algo mais do que um simples passatempo.
Sem ordem cronológica nem preferência de gosto:
– RIO BRAVO (Hawks) e a gota de sangue no copo de whisky.
– O HOMEM QUE MATOU LIBERTY VALANCE (Ford), no Império, de mão dada com a minha namorada. Lembro-me mais dela que do filme, numa tarde inesquecível que ainda hoje recordo com emoção. Nunca mais perdi um filme de John Ford.
– INTRIGA INTERNACIONAL (North by Northwest) de Alfred Hitchcock. No dia em que fugi com o meu primo Alfredo do internato do Colégio Moderno. Só voltámos noite cerrada, com polícia e hospitais alertados, o que valeu ao Alfredo uma bofetada da minha mãe que lhe partiu os óculos. Anos mais tarde li e reli um dos raros livros de cinema que me interessou, «Hitchcock Truffaut», já o grande realizador se tinha tornado uma referência inesquecível.
– MUDAR DE VIDA de Paulo Rocha. Acompanhei um dia Maria Barroso ao Furadouro. Vi pela primeira vez um local de filmagem, os projectores, os técnicos do som, os actores e toda uma agitação criativa fascinante. Gostei muito deste filme e, sobretudo, da beleza inesquecível de Maria Barroso, que toda a vida admirei e amei como a minha mãe.
Por esta altura, membro e frequentador assíduo do Ciné-club Universitário, já o cinema e o militantismo político se confundiam para refazer o mundo e contestar o regime. A polémica em torno de DESERTO VERMELHO de Antonioni, entre «revolucionários anti» e «burgueses pró-Antonioni», foi para mim marcante, tanto mais que me encontrei do mau lado da barricada.
– O COURAÇADO POTEMKINE de Sergei M. Eisenstein. Projectado clandestinamente dezenas de vezes em 8 mm pelo João Soares. A mãe, Maria Barroso Soares, tinha-lho trazido de Paris.
– Os filmes, longas-metragens em super 8, realizadas e produzidas pelo João Soares, em que eu era o actor principal. Infelizmente roubaram-me a única cópia original em Paris, pouco antes de eu concorrer ao IDHEC.
Anos mais tarde, aluno no IDHEC, Jean Douchet, meu professor, projectou-nos LA NUIT DU CHASSEUR (Charles Laughton), filme que ele teria visionado mais de 100 vezes e que conhecia fotograma a fotograma. Crítico apaixonado e apaixonante, Douchet deve ter criado uma promoção de 22 jovens fascinados pelo filme. Durante anos Jean ritmou a minha vida profissional. A última vez que com ele trabalhei foi no filme de João César Monteiro, A COMÉDIA DE DEUS, que evidentemente integra esta pequena lista de filmes de que gosto e me marcaram.
– BRANCA DE NEVE de João César Monteiro, de que fui, com muita honra, director de fotografia. Não o cito por provocação mas por sincera convicção. Marcou-me e obrigou-me a reflectir sobre o papel do realizador e do director de fotografia na construção de um filme e na concepção da luz e da imagem, de que o realizador é o único responsável.
– UN BALLON DANS LA TÊTE e LA PETITE FADETTE de Michaëla Watteaux, argumentista e realizadora. Minha companheira e cúmplice de mais de 50 anos. Duas longas-metragens produzidas pela televisão francesa, a primeira em co-produção com a RTP, de que era responsável Fernando Lopes. Depreciativamente considerados «telefilmes», são para mim inesquecíveis. Fui director de fotografia do primeiro, filme que Michaëla escreveu para que eu o realizasse. Recusei, evidentemente. O filme diz-nos respeito por retratar um Portugal sob a ditadura salazarista, visto por uma muito jovem realizadora que desse período só me conhecia a mim e as histórias que eu lhe contava. O Carlos Saboga colaborou enquanto consultor na revisão do argumento. No segundo não colaborei mas gostei muito ao assistir à sua projecção num grande écran.
Finalmente, os filmes do nosso Mestre e Amigo Manoel de Oliveira. Quase todos me marcaram, de quase todos gostei muito. Como não posso citá-los todos, limito-me a dois. O primeiro, FRANCISCA. A minha primeira colaboração cinematográfica com o Manoel, como actor. O que eu aprendi nesse filme levaria horas a contar. Um pequeno incidente que me serviu e serve ainda hoje: durante a rodagem de um longo plano-sequência de quase 10 minutos — talvez menos mas, para mim, muito mais longo ainda, apesar de ser impossível, dado que uma bobine de filme só permitia 10 minutos de filmagem — Diogo Doria e eu conversámos à mesa. Após horas de enganos, erros e outros incidentes, chegámos ao fim do longo diálogo. Radiante por termos conseguido terminar a take, desviei a cabeça e apanhei um copo de água à minha frente. O «corta» gritado pelo Manoel era um grito de desespero: «Porque é que o Mário pegou no copo?». Respondi-lhe, receoso e já arrependido: «Porque estamos a jantar e é normal apanhar um copo quando estamos à mesa». E ele, impaciente e já mais calmo: «Mas se toda a gente apanha normalmente um copo de água à mesa, que interesse tem isso para o espectador?». E lá recomeçámos durante muito tempo o plano até conseguirmos aquilo que o realizador desejava. O cinema de Manoel de Oliveira é um exemplo de imaginação e rigor, sem banalidades, gestos ou planos inúteis. E, para terminar esta longa evocação, VALE ABRÃO, em que participei como narrador e director de fotografia. Um filme maravilhoso. Ao iniciarmos a rodagem de uma sequência perguntei-lhe se filmávamos o Luís Miguel a entrar na sala. «Porquê, entra a cavalo ou pela janela? Se entra pela porta, então já cá está.»
Participei, como director de fotografia, assistente, actor e realizador em mais de 140 filmes. Nunca fui um «cinéfilo», mas sempre tive por eles uma imensa admiração e gratidão. O melhor é verem as «listas» de filmes que eles sugerem.